Recomeço

    



Sou muito boa em recomeçar. Eu facilmente me retiro de um ambiente que não me agrada e vou para outro. Não tenho apegos e corto laços como quem vira a esquina.


Lembro quando meu avô ficou doente e eu fiquei algumas horas sentada 'me ensinando' a deixá-lo ir para que a despedida não fosse triste. Quando ele morreu, não derramei uma lágrima. Sou realmente muito boa nisso.


Bloqueio pessoas que entraram na minha vida e que não estavam de acordo com meus planos futuros. Se não são compatíveis moral e eticamente, corto sem dó. Bloqueio nas redes socais e sigo como se essa pessoa nunca tivesse existido.


Decidi recomeçar depois de realizar um sonho parcialmente. Fiquei anos querendo me formar em cinema e trabalhar em um filme de animação. Quando finalmente o fiz, percebi que a pouca valorização de artistas no Brasil seria um empecilho para meus planos de começar a morar sozinha. Não descartei o sonho - apenas o engavetei provisoriamente - mas percebi que precisaria ter uma profissão 'séria' se quisesse ser responsável pelas minhas contas.


Cineasta, Roteirista e Animadora (conforme meus títulos nos créditos dos filmes), foram guardadas em uma caixa até o momento quando teria como patrociná-las. Esse foi o maior erro do desapego.


Formada em Arquitetura, descobri um mercado de trabalho extremamente seco. Observei - sem me envolver - uma colega ser vítima de chacota da chefe por ter que levar seu filho para fazer uma cirurgia cardíaca (foi isso mesmo que você leu), vi uma outra colega trabalhar até as 23h e chegar as 8h no dia seguinte com medo de ser demitida caso se atrasasse.


Imaginei que o problema estava na empresa e embarquei na ilusão de prestar serviços e conquistar meus próprios clientes.


O relacionamento cliente x prestador deve ser um dos mais tóxicos que já vi.


Tive cliente que levou um documento para eu assinar quando estava internada na maternidade (novamente, foi isso mesmo que você leu), tive uma cliente tão invasiva que monitorava meus passos, chegou a levar um documento na casa da minha mãe quando dei o endereço para enviar apenas por Sedex (em minha defesa, eu estava de férias em outro continente e o prazo de atendimento era de 60 dias!) e tive o absurdo do cliente que pegou meu projeto-proposta, entregou para uma empresa de planejados fazer, não gostou do resultado e ME processou, sem me pagar um centavo.

    Observando meus colegas que na época pré-pandemia se ajoelhavam aos pés dos clientes, viravam noites trabalhando e agradeciam ao serem pagos abaixo do piso-salarial (afinal, graças a Deus estavam empregados), eu me questionava se aquilo era normal. Essa infelicidade, essas horas de vida mal vivida, esse sufoco de trânsito-trabalho-trânsito ridiculamente não fazia sem sentido para mim. 

    Os boletos sempre me sorriam como carcereiros quando pensava em escapatórias. 

    Cada vez que o telefone tocava sentia uma dor no estômago, cada vez que entrava no site dos órgãos públicos para conferir o andamento da aprovação dos projetos, minha pernas bambeavam. Cada carta que recebia começava a chorar, temendo ser um comunique-se. Ansiedade no pico, talvez até mesmo um burn-out? 

    Admiti que terapia precisa ser uma constante. Entrei em um jogo onde os clientes acreditam que são meus donos por pagarem uma parcela de doze prestações. 

    Nesse cenário, entendo perfeitamente quem está praticando o quiet-quitting. Eu não posso fazer isso, por motivos óbvios, mas não peguei mais nenhum projeto. Há dois anos apenas monitoro o andamento dos últimos e aguardo com pouca paciência o dia em que eles serão deferidos e eu serei liberta. 

    O quiet-quitting faz um sentido parcial para mim. Em um mundo onde todos precisam vestir a camisa da empresa, onde precisam entregar a mais do que se pede, onde precisam impressionar os superiores a cada nova ordem, não é a toa que o esgotamento ia expor essa rotina massacrante e pouco valorizada. 

    Precisam se vender o tempo todo, precisam ter um Instagram limpo e harmonioso, um Facebook sem textão, um Twitter para postar uma opinião censurada (afinal, o patrão pode estar vendo). Vida pessoal é monitorada pela vida profissional. 

    Isso é insano! O mercado cada vez mais exigente mata, dá úlcera, dá burn-out, dá depressão e tendências suicidas. O mercado está tóxico e se achando o máximo porque, assim como meus clientes, se acham donos de pessoas que prestam um serviço para viver. 

    Fico feliz em ver que a pandemia escancarou esse problema. Não podemos viver na tensão, na exigência de alta performance. É preciso VIVER. 

    No meu caso, sou muito boa em recomeçar. Em 2023 completo dez livros publicados. Recomeço um blog depois de deletar meu antigo - erro que cometi na mesma época que engavetei a roteirista - e vou investir mais ainda na minha carreira de escritora. 

    Não posso dar meu máximo onde não sou feliz. 

    Aqui, em 2023, vou recomeçar (das 8h as 17h). 






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