O Bolinho de Bacalhau

A Sexta-feira Santa sempre foi mais aguardada do que a Páscoa. Por mais que no domingo ganhássemos ovos de chocolate, era na sexta-feira que o banquete acontecia.


A família de origem portuguesa não deixava de respeitar a data com receitas de frutos do mar. Por mais que ainda sentissem os reflexos de uma imigração feita às pressas pela geração anterior, era obrigatório ter um almoço farto que reunia bisavós, avós, filhos e netos.


Minha bisavó Rosa era a encarregada do bolinho de bacalhau que tinha o gosto de Portugal. Minha avó Fátima se ocupava de uma receita mais brasileira, o Bacalhau com Coco. As panelas fumegantes exalavam um perfume que fazia com que nós, os netos, parássemos de brincar para ficar em volta do fogão, salivando como se não víssemos comida há dias.


O Bacalhau com Coco era feito com várias mãos. Meu avô comprava o coco seco e raspava a parte branca para que fosse adicionado à mistura ainda fresco. Inclusive, inventou um ralador com um pedaço de madeira e ferro forquilhado que foi herdado de pai para filho. Uma engenhoca realmente útil quando se trata de ralar coco.


Minha avó sempre fez questão de nos ensinar a receita. Passei anos indo logo cedo à sua casa para ajudá-la nos preparativos. Era um dia delicioso, pois além de aprender a magia da cozinha, também conversávamos bastante. Suas histórias de infância e fofocas de família me encantavam e acredito que foi fundamental para que me apaixonasse por literatura e me tornasse escritora. Saber contar uma boa história é um dom para poucos.


Mas o bolinho de bacalhau da bisavó Rosa era lendário. Ela fazia uma vez por ano - talvez porque soubesse que a escassez nos faria colocá-lo em um pedestal gastronômico - e raramente alguém acompanhava o processo. Fazia o suficiente para todos comerem, mas sem repetir oito vezes (que era justamente o desejo de cada bisneto).


Minha bisa não escondia o sorriso quando nos via devorando tudo. Ela sabia que era um sabor divino que trazia à tona toda a nossa ancestralidade portuguesa.


Ela partiu muito cedo e uma das missões dos que ficaram foi revirar seus cadernos de receitas em busca do bendito bolinho. Segundo a lenda, ela colocava os ingredientes "a olho" e nunca errava a mão.


Alguns anos se passaram e nunca mais provamos o bolinho de bacalhau. Minha avó se mudou para outra casa e levou os cadernos da mãe com ela. Quando meu avô acamado dormia, ela ia explorar as receitas nas páginas amareladas, tentando matar um pouco da saudade vendo as letras redondas da minha bisavó.


Para a alegria de todos, em uma sexta-feira santa, minha avó nos deu uma grande notícia. Na última página de um livro de receitas, anotado à mão, estava escrito: bolinho de bacalhau mais ou menos.


Conseguimos reproduzir um clone do incomparável bolinho. Mas assim como todos os clones não tinha o brilho do original. Porém foi o suficiente para que todos nós, já adultos e grisalhos, ficássemos com os olhos marejados com o sabor afetivo.


Faz dois anos que minha avó se juntou à bisa. Fiz questão de anotar e salvar na nuvem as receitas do Bacalhau com Coco e do Bolinho de Bacalhau. Não terão o sabor, o carinho ou colo das matriarcas, mas com certeza têm seu caloroso DNA.





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