A Pequena Sereia e o Cancelamento de uma Geração





Quando eu tinha 4 anos, A Pequena Sereia original foi lançada. Assisti em VHS, no sofá da sala, e devo ter pedido ao meu pai para alugar o filme tantas vezes que ele acabou comprando uma cópia. Assisti em português até a fita estragar. Aos 14 anos, terminei meu curso de inglês e estava determinada a assistir e memorizar todas as músicas no idioma original. "Under The Sea" é simplesmente maravilhosa.


Até os meus 25 anos, eu não via problema na mensagem que Ariel passava. Ou seja, em 2010, já formada em cinema há pelo menos 5 anos, eu ainda via a animação como uma válvula de escape de um mundo hostil.


Foi apenas quando saí da minha bolha ficcional que entendi o problema gigantesco de vender uma sereia (que vamos combinar, é algo que brilha nos olhos de muitas meninas) como alguém que busca única e exclusivamente um namorado, renunciando sua cauda e deixando para trás tudo o que ela é: herdeira do trono aquático, para se dedicar a um relacionamento.


É possível traçar um paralelo com mulheres reais? Quantas não deixaram suas carreiras de lado, tornaram-se donas de casa, mães e (as mais conscientes) se dedicam a jornadas triplas de trabalho para não abrir mão de suas carreiras e de seu "amor"?


Será que Ariel fez um bom negócio? Será que o príncipe chega em casa, lava a louça, divide as tarefas domésticas e cuida dos filhos para que Ariel possa estudar? Será que ele acha que está "ajudando" em casa, em vez de questionar a divisão igualitária das tarefas domésticas?


Fico feliz em ver que outros filmes (a partir de Mulan) já questionaram essa posição submissa das protagonistas. Fiquei incrivelmente contente quando Moana não teve como recompensa um par romântico, mas a salvação de sua tribo.


Sim, é possível ser feliz sem um relacionamento. É possível ser uma heroína que se basta por si só.


Claro que estou problematizando um filme que foi criado há mais de trinta anos, baseado em um conto de 1897, onde o maior sonho de uma mulher era fazer um bom casamento. Não quero censurá-lo com uma bandeira feminista, assim como não acho justo alterar os clássicos como Monteiro Lobato por conter trechos claramente racistas.


Não acredito em censurar a história ou apagar os costumes de uma época. Pelo contrário, acredito que devemos expô-los, questioná-los e sentir vergonha alheia, aprendendo e fazendo de forma diferente hoje. Nada que uma introdução bem feita e uma nota de rodapé identificando as partes problemáticas e convidando ao debate não possam resolver.


Cancelar os clássicos e reescrevê-los com nossa mentalidade atual não cria pessoas questionadoras. A Pequena Sereia não é feminista. Ela não busca uma carreira, independência ou luta por um salário igual ao dos homens. Talvez a melhor maneira de questionar essa postura (para que não criemos filhas que se anulam em relacionamentos) seria ter um curta-metragem anterior ao filme, mostrando uma personagem atual e forte, que inspire tanto quanto Ariel.


Vamos combinar, isso já foi feito muitas vezes e com brilhantismo.


À medida que a sociedade evolui, é importante que novas narrativas sejam criadas para refletir a diversidade e a complexidade do mundo em que vivemos. Podemos celebrar os clássicos como marcos importantes na história cultural, ao mesmo tempo em que buscamos ampliar o escopo das histórias contadas e trazer perspectivas mais inclusivas e representativas para o público.

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